Publicado originalmente em 30/04/2021 no Migalhas
Por Paola Pereira Martins
O Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/15”) adota o chamado modelo multiportas de resolução de conflitos, o que, nos ensinamentos de João Lessa Neto, significa dizer que “cada disputa deve ser encaminhada para a técnica ou meio mais adequado para a sua solução1”.
Neste espírito, positivou a norma processual em seu art. 3º, que “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos2”, bem como que “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial3”.
A norma processual busca incentivar uma mudança de cultura quanto à visão de que a resolução judicial de conflitos é a mais efetiva. A cultura do litígio judicial é marcadamente forte no Brasil. De acordo com Dados do Relatório Justiça em Números 2018, 80 milhões de processos tramitavam no Judiciário brasileiro em 20174.
A terceirização do conflito, transferindo a responsabilidade deste a um indivíduo exterior, o qual se pretende imparcial, retira o protagonismo das partes e perde, em muito, em termos de especialização no que tange as disputas mais técnicas e completas.
É, em grande medida, a situação das disputas empresariais, com destaque à resolução de conflitos societários.
As relações entre sócios são notadamente marcadas por serem relações nem tanto profissionais quanto de fato pessoais, principalmente no que tange às chamadas sociedades de pessoas, nas quais os atributos individuais dos sócios são mais relevantes do que a própria contribuição material/de capital que fazem5, como é o caso da sociedade limitada.
Tanto é verdade, que dados do Sebrae e do IBGE datadas do ano de 2018 apontam que empresas familiares representam 90% (noventa por cento) dos empreendimentos no Brasil6.
Todavia, em que pese ser comum abordarmos a imperiosidade da adoção de métodos como mediação e conciliação para resoluções de conflitos atinentes às disputas familiares, como divórcios, guarda, alimentos, etc., dificilmente trazemos a mesma luz no que concerne aos conflitos societários, apesar de tratarem-se, a mais das vezes, de verdadeiras disputas familiares.
Urge que uma visão mais adequada das disputas societárias se debruce em todas as nuances atreladas a este tipo de conflito, posto que envolve relações pessoais e afetivas, mas, na mesma medida, coloca em cheque a sobrevivência da empresa, sua colocação e boa fama no mercado, envolvendo aspectos comerciais e financeiros.
Uma disputa societária, portanto, é uma disputa complexa e que notoriamente irradiará seus efeitos para muito além das partes envolvidas, pois é certo que atingirá frontalmente a empresa, seus órgãos de direção, funcionários e clientes e, ainda, poderá impactar diretamente em relações familiares, prolongando-se no tempo.
Neste sentido:
Além de um conflito societário demandar uma solução rápida, a fim de mitigar eventuais prejuízos causados aos sócios, à sociedade, aos seus fornecedores e aos seus empregados, não há quem conheça melhor a causa do conflito e seu contexto do que os próprios envolvidos, ou seja, os sócios. Alcançar uma solução consensual entre estes é a melhor opção possível, visto que, apesar de sempre haver divergências, o objetivo dos sócios tende a ser o mesmo: o êxito da atividade empresarial e consequentemente o lucro. Há de se ressaltar, ainda, que ao evitar um processo judicial, evita-se também a divulgação de informações relevantes da empresa no processo, como balanços patrimoniais, demonstração de resultados e de fluxos de caixa7.
Por tal razão, ante ao cenário de sistema processual multiportas, nada mais acertado do que a busca, tanto pela ordem processual quanto por seus operadores, em principal os advogados que assessoram este tipo de conflito, envidem sérios esforços no sentido de desenvolver sensibilidade para propositura do meio mais adequado da resolução da disputa, o qual, a mais das vezes, não residirá em socorrer-se em um judiciário pouco especializado no que tange às matérias de direito societário.
O protagonismo dos sócios precisa ser, portanto, restaurado através de iniciativas como a mediação e a conciliação, as quais necessitam ser fomentadas nos instrumentos societários (contratos sociais, estatutos, acordos de quotistas, etc.). Muitas vezes, o maior benefício econômico e também pessoal advém da restauração do diálogo entre as partes, a fim de preservar a atividade empresarial, solucionando de forma muito mais assertiva a situação, do que qualquer eventual dissolução parcial e intermináveis discussões sobre apuração de haveres.
Conclui-se, assim, que o sistema processual multiportas inaugura uma nova era no que tange a cultura de resolução de conflitos societários, e que, para sua plena efetivação, necessita ser estimulada pelos operados do direito, posto já ser passada a hora da superação do paradigma da litigiosidade, sendo preciso prestigiar, tal qual o CPC/15, a cooperação.
- NETO, João Lessa. O Novo CPC Adotou o Modelo Multiportas!!! E Agora?!. Revista dos Tribunais Online – Revista de Processo. Vol. 244/2015. P. 427. Jun. 2015
- BRASIL, lei 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil. Disponível aqui. consultado em 20/4/21.
- Idem.
- BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números 2018. Disponível aqui. consultado em 20/4/21
- COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 19ª Edição. Ed. Saraiva. São Paulo, 2015. P. 43
- PETRONI, Maju. Empresas Familiares Representam 90% dos empreendimentos no Brasil. Jornal da USP. São Paulo. 18/10/2018. Disponível aqui. Acessado em 23/4/21.
- COSTA, Leonardo Dalla. Autocomposição no Direito Societário. Disponível aqui. Acessado em 23/4/21
*Paola Pereira Martins
Sócia na Beck Advogados, é especialista em Direito Societário, Direito Civil e Processo Civil. Pós Graduanda em Gestão e Marketing Jurídico. Mestranda em Direito pela UFRGS.