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Reforma Tributária e Planejamento Sucessório: novo regramento do ITCMD

Por Paola Martins* e Carolina Mosmann**

Em 20 de dezembro de 2023, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 132 (EC 132), sinalizando uma ampla reforma no Sistema Tributário Nacional.

Entre as diversas alterações trazidas pela Reforma, estão aquelas associadas ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD. O ITCMD está previsto no art. 155, I da Constituição Federal e incide sobre a transferência de propriedade de bens, abrangendo tanto os móveis quanto os imóveis, seja em decorrência do falecimento do titular (causa mortis) ou por meio de doação (transferência gratuita de bens).

As alterações têm repercussão direta nas estratégias adotadas pelas famílias para a transferência do patrimônio aos herdeiros e sucessores, uma vez que, conforme veremos adiante, essas alterações poderão resultar no aumento da alíquota de ITCMD incidente sobre a operação.

A seguir, ressaltamos os principais pontos a serem considerados quanto ao tratamento do ITCMD no âmbito do planejamento sucessório. Em seguida, apresentamos ferramentas do direito societário capazes de facilitar e otimizar os processos de divisão e transferência do patrimônio.

Alíquota Progressiva

O primeiro ponto a ser destacado diz respeito à obrigatoriedade de adoção pelos Estados de alíquota progressiva para o ITCMD.

Atualmente, os estados possuem autonomia para estabelecer as alíquotas de ITCMD praticadas, desde que dentro do limite de 8%, instituído pela Resolução nº 09/92 do Senado Federal. Alguns estados cobram esse imposto de forma escalonada/progressiva, a depender do valor dos bens transmitidos, como Rio de Janeiro e Santa Catarina, enquanto outros determinam uma alíquota fixa, como é o caso de São Paulo, Alagoas, Amapá, Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná e Roraima.

Com a Reforma Tributária, embora a alíquota máxima permaneça em 8%, todos os estados deverão instituir uma progressão na alíquota do ITCMD. A progressividade, antes facultativa, demanda que os estados que ainda não a adotaram modifiquem suas legislações para estar em conformidade com essa determinação.

Com a progressividade nas alíquotas do ITCMD, a alíquota do imposto aumentará conforme o valor do patrimônio doado ou herdado, de modo que famílias com alto patrimônio deverão ser as principais afetadas.

Adicionalmente, a proposta de alteração abre espaço para uma nova Resolução do Senado, órgão constitucionalmente competente com respeito à limitação das alíquotas de ITCMD que possam ser atribuídas pelos estados, algo que poderia elevar a alíquota máxima deste imposto, aproveitando o contexto político de grandes mudanças tributárias e a conjuntura internacional, principalmente de países da OCDE, que possuem, regra geral, alíquotas mais agressivas de tributação sobre herança.

Nesse contexto, relevante destacar que já está em tramitação no Senado o Projeto de Resolução 57/2019, que visa dobrar a alíquota máxima do ITCMD de 8% para 16%, representando um substancial encargo para as transmissões por doação ou causa mortis.

Competência

O segundo ponto a ser destacado refere-se à competência para cobrança do ITCMD.

Segundo o regime de competência vigente, o ITCMD é recolhido no estado onde ocorre o processamento do inventário ou onde o doador possui domicílio, e, no caso de imóveis, no estado em que o bem está localizado.

Com as modificações implementadas pela Reforma Tributária, a competência para a cobrança do imposto será transferida para o estado em que o falecido tinha domicílio, independentemente da localidade do inventário, exceto no caso de transmissão de bens imóveis, em que manteve a regra atual, da tributação pelo estado em que o bem imóvel está situado.

Ademais, com relação aos inventários extrajudiciais, atendidas as condições estabelecidas na legislação, os herdeiros poderiam escolher o estado em que haveria o processamento, ou seja, o tabelionato de notas de sua preferência, independentemente da unidade federativa em que o falecido tinha domicílio, viabilizando-se a opção pelo estado de menor tributação, com relação aos bens móveis.

Com as modificações implementadas pela Reforma Tributária, esta prática passa a ser vedada, restringindo-se a competência do inventário extrajudicial ao estado de domicílio do autor da herança (falecido).

Inventário, Bens e Falecimento em País Estrangeiro

O terceiro e último ponto de alteração legislativa a ser abordado diz respeito à tributação de bens no exterior.

Antes de 2021, parte dos estados exigiam o pagamento de ITCMD sobre bens e heranças provenientes do exterior. Desde 2021, por força de decisão do Supremo Tribunal Federal – STF (RE 851.108, ou Tema 825), a cobrança de ITCMD em relação às doações e heranças instituídas no exterior, é considerada inconstitucional. Na ocasião do julgamento, compreendeu o Supremo que apenas uma lei complementar nacional poderia permitir a cobrança.

Com o advento da Reforma, passou-se a prever que, até que promulgada a referida lei complementar nacional, os estados poderão legislar sobre a matéria, respeitando as seguintes regras de competência tributária:

1.     Para transmissão causa mortis e doação de bens imóveis e seus direitos, competência tributária do Estado onde localizado o referido bem;

2.     Para doações de bens por residente no exterior, o estado de residência do donatário é competente ou, não sendo o donatário domiciliado no País, o estado onde localizado o bem é competente para a cobrança do ITCMD; e

3.     Para transmissão causa mortis de bens localizados no exterior, o estado competente é o de domicílio do autor da herança ou legado ou, não sendo este domiciliado no Brasil, a competência será do estado em que domiciliado o herdeiro ou legatário.

Antecipação das Doações em Vida – Mecanismos Societários

Os principais aspectos da Reforma referentes ao tratamento do ITCMD, anteriormente discutidos, indicam uma iminente elevação da carga tributária sobre a transferência de bens entre gerações, preocupando os contribuintes. A expectativa de aumento da carga tributária ligada à transmissão de patrimônio por doação ou sucessão tem impulsionado consideravelmente o aumento de demandas nos escritórios de advocacia para planejamento sucessório.

Ao longo deste ano, muitas famílias decidiram antecipar a transferência das heranças aos herdeiros e sucessores, realizando-a ainda em vida, para aproveitar as regras tributárias vigentes e evitar a incidência de alíquotas maiores de ITCMD.

Estruturas societárias, como holdings familiares, têm se destacado como facilitadoras nos planejamentos sucessórios, sendo algumas de suas vantagens:

1.     Proteção Patrimonial: A holding proporciona uma camada extra de proteção patrimonial, separando os bens dos riscos comerciais e pessoais dos membros da família;

2.     Centralização: A holding familiar permite concentrar todo o patrimônio familiar sob um único guarda-chuva, facilitando, assim, a racionalização e a transmissão do patrimônio familiar, que se dará através da transferência de participações societárias.

3.     Benefícios Fiscais: A transferência das quotas de uma holding pode resultar em vantagens fiscais, como um tratamento tributário favorável sobre ganhos de capital, dependendo das circunstâncias individuais; e

4.     Simplificação da Administração: Consolidando os ativos familiares em uma holding, a gestão e administração dos bens torna-se centralizada e simplificada;

Neste formato organizacional, os bens da família são transmitidos à holding à título de aumento de capital, transmissão sobre a qual não há incidência de impostos. Dentro dessa estrutura societária, esses ativos são então distribuídos aos herdeiros e sucessores por meio da doação de quotas ou ações detidas pela matriarca e/ou patriarca. Isso elimina a necessidade de múltiplos atos de doação, simplificando o processo sucessório ao concentrar a transferência de patrimônio em um único evento: a doação da participação societária, sempre observando as regras de sucessão legítima, conforme art. 1.846 do Código Civil.

Implementada a doação das quotas, os herdeiros e sucessores passarão a integrar o quadro societário da holding, sujeitando-se às regras da sociedade.

É comum que  no âmbito das holdings familiares sejam estabelecidos Acordos de Sócios que delineiam as relações societárias e familiares, permitindo a diferenciação de direitos e deveres entre as gerações. Esses acordos podem incluir restrições ao ingresso de terceiros, como cônjuges, na administração da sociedade, bem como restrições aos direitos de voto.

Adicionalmente,  através de um planejamento sucessório adequado, é possível que sejam estabelecidos, no ato de doação, mecanismos contratuais capazes de atribuir maior proteção ao patrimônio familiar e aos interesses da matriarca e/ou patriarca, entre o quais, destacam-se:

1.     Reserva de Usufruto: Consiste na constituição de um direito real em favor do doador das ações/quotas, conferindo-lhe, conforme previsto no art. 1.394 do Código Civil, o direito de posse, uso, administração e percepção dos frutos do bem doado. Dessa forma, apenas a nua-propriedade do bem é transferida ao donatário, enquanto o doador mantém certos direitos, como o recebimento de dividendos e/ou juros sobre o capital próprio associados à participação societária doada, além do exercício dos direitos políticos da sociedade por meio do direito de voto. O usufruto é extinto com o falecimento do doador, momento em que a plena propriedade do bem doado ao donatário é consolidada.

2.     Reversão: Embora seja comum que os pais faleçam antes de seus filhos, essa situação nem sempre se confirma. Diante dessa incerteza, a inclusão de uma cláusula de reversão pode ser uma medida útil. Essa cláusula assegura que, em caso de falecimento do nu-proprietário, o bem doado retorne ao usufrutuário/doador ou a outro beneficiário por ele designado, evitando que o bem faça parte do inventário do falecido e seja transferido para terceiros que não pertençam ao núcleo familiar.

3.     Inalienabilidade: A cláusula de inalienabilidade garante que o bem doado não pode ser vendido sem o consentimento explícito do doador, enquanto o usufruto estiver vigente. Na forma do art. 1.911 do Código Civil, ao estabelecer cláusula de inalienabilidade, há implicância de impenhorabilidade e incomunicabilidade, como se verá a seguir.

4.     Impenhorabilidade: Com o estabelecimento de cláusula de impenhorabilidade sobre as ações/quotas, busca-se a proteção do ativo doado, para que esta não possa a vir  ser apreendido, penhorado ou utilizado para pagamento de dívidas em processos judiciais, garantindo, com isto, que a participação societária doada não esteja ao alcance de credores dos donatários.

5.     Incomunicabilidade: Esta disposição sobre as ações/quotas doadas tem como objetivo evitar que a participação societária doada seja incorporada ao patrimônio comum do casal. A incomunicabilidade protege o patrimônio de ser dividido em caso de dissolução da sociedade conjugal ou união estável, caso os donatários sejam casados, vivam em união estável ou contraiam casamento ou união estável após a realização da doação.

A respeito da cobrança de ITCMD nas doações instituídas com reserva de usufruto, é importante mencionar a existência de controvérsia quanto ao momento de incidência, na medida em que já foram objeto de ação judicial a exigência por alguns Estados do pagamento do imposto não apenas no momento da doação com reserva de usufruto, mas também na extinção do usufruto, quando ocorre a consolidação da plena propriedade em favor do donatário.

No entanto, o entendimento majoritário observado no âmbito judicial é de que a incidência do ITCMD deve ocorrer apenas no momento da doação, na medida em que a extinção do usufruto não representa uma nova transferência de propriedade.

Por fim, em relação à cobrança de ITCMD em doações que incluem a previsão de reversão, é essencial esclarecer que quando o mecanismo de reversão é acionado – por exemplo, no caso de falecimento do donatário antes do doador – não ocorrerá incidência do ITCMD. Em outras palavras, a retomada pelo doador da plena propriedade do bem que foi objeto da doação não resulta na obrigação de pagamento do ITCMD. A interpretação predominante é de que, uma vez que se trata de uma resolução do contrato de doação, o fato gerador do ITCMD não se configura. No entanto, é importante observar que há debate sobre esse assunto, e não é incomum encontrar situações em que os estados buscam cobrar o imposto na reversão da doação.

Considerações Finais

A Reforma Tributária em implementação, particularmente no que diz respeito ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, desencadearam uma série de mudanças significativas no cenário do planejamento sucessório e na transferência de patrimônio familiar.

A adoção de uma alíquota progressiva em todos os estados, juntamente com a ampliação do escopo da incidência do ITCMD impactam diretamente nas estratégias adotadas pelas famílias para proteger seu patrimônio e planejar a sucessão.

Diante desse contexto, a antecipação dos planejamentos sucessórios e a utilização de ferramentas societárias, como as holdings familiares, surgem como alternativas eficazes para minimizar o ônus tributário e simplificar o processo de transmissão de patrimônio.

Por derradeiro, a doação de participação societária com reserva de usufruto e a elaboração de cláusulas de proteção patrimonial oferecem soluções estratégicas para garantir a segurança e continuidade do legado familiar.

*Paola Pereira Martins

Sócia na Beck Advogados, é especialista em Direito Societário, Direito Civil e Processo Civil. Pós Graduanda em Gestão e Marketing Jurídico. Mestranda em Direito pela UFRGS.

**Carolina Mosmann

Advogada e Mestre em Direito.