Publicado originalmente em 22/05/2024, LeiEmCampo
Por Ana Helena Karnas Hoefel Pamplona*
A reforma tributária, aprovada no final de 2023, ao tratar do sistema tributário nacional e seus princípios gerais, estabeleceu no parágrafo 3 do art. 145 o princípio da justiça tributária. A discussão sobre a aplicabilidade e eficácia dos princípios será um tema eterno. Não existe dúvida que em tempo não muito longínquo estar-se-á debatendo a constitucionalidade de normas tributárias a luz do princípio constitucional da justiça tributária. Estar-se-á diante de um grande desafio. Em verdade, o princípio da justiça tributária parece ser muito mais um princípio mãe, como a dignidade da pessoa humana, abarcando diversos outros princípios como neutralidade fiscal, capacidade contributiva, igualdade entre outros.
Ao falar em justiça tributária, obviamente remete-se a ideia de uma tributação justa, ou seja, uma tributação que, de um lado é suficiente para financiar o Estado Democrático de Direito e do outro, não onera de forma ilegítima o contribuinte. Convém esclarecer que o debate aqui não é o tamanho e funções do Estado e, consequentemente do custo que esse deve representar para os contribuintes. Parte-se do pressuposto que as funções e o tamanho do Estado, pelo menos em termos gerais, já estão definidos na Constituição.
A questão a ser abordada é: existe ou deveria existir impacto do princípio da justiça tributária na atuação conjunta dos três poderes. Dizem que pior do que não saber a resposta é não entender a pergunta. Dessa forma, vale o esclarecimento. Será que, quando estamos diante da atuação dos três poderes em razão do exercício dos freios e contrapesos, existe preocupação por parte dos poderes ao respeito do princípio da justiça tributária?
A maturidade fática e acadêmica quanto ao tema, neste momento, permite a identificação de situações em que, por óbvio, não parece existir respeito ao princípio em tela. A forma de atuação dos três poderes na esfera tributária tem trazido não só um sentimento de insegurança jurídica, mas também de completa injustiça tributária.
São inúmeros exemplos representativos da montanha-russa que se tornou a vida dos contribuintes com a atuação descoordenada dos poderes. Sob o pretexto de cumprir a Constituição, as questões tributárias do Brasil se tornaram um cabo de guerra de 3 pontas, com o contribuinte no meio. O contribuinte sempre perde, mesmo quando aparentemente vencedor, a resposta demorou demais para chegar.
Para exemplificar, utilizam-se dois temas em voga desde o início do ano: a tributação das “Bets” e a desoneração da folha de pagamento. Trata-se de dois temas sensíveis diante do tamanho do impacto que podem vir a ter nos cofres do governo. Nesse sentido, o cenário existente é: o executivo buscando maior receita, o legislativo negociando trocas com os mais diversos setores envolvidos e o judiciário supostamente tentando fazer cumprir a Constituição Federal.
O exemplo da “desoneração da folha” é trágico para não utilizar outra expressão. Desde 2011 o histórico legislativo deixa claro o constante embate entre Poder Legislativo e Poder Executivo quanto à temática. Trata-se de tema que passou por mais de quatro governos e a queda de braço permaneceu. Na semana passada, a novela ganhou novos capítulos com direito a significativas inovações. Segue a breve descrição:
O Poder Legislativo em 2023 optou por prorrogar o benefício – até 2027 – da mesma forma que já o fez em outras oportunidades. O Executivo tentou barrar através de veto e Medidas Provisórias. Os vetos foram derrubados, as Medidas Provisórias foram revogadas ou encerradas e o Poder Judiciário entrou em cena. Provocado pelo Executivo através de Ação Direta de Inconstitucionalidade, em decisão monocrática, o STF suspendeu o benefício. Contribuintes perguntaram-se: como devo pagar no dia 20 de maio? A lei me garante um benefício, o judiciário suspendeu, o sistema está fechado, mas … não existe a necessidade de observância do princípio constitucional da noventena? A Receita Federal emitiu manifestação que já para a competência de abril dever-se-ia pagar considerando a renda. Mandados de Segurança passam a ser impetrados. Notícias de tratativas entre Congresso Nacional e o Ministério da Fazenda aparecem de forma aleatória na mídia. Até que, por pedido da AGU e concordância do Congresso Nacional, na sexta-feira, dia 17 de maio, o Poder Judiciário concordou com o pedido de “suspender a suspensão da norma” por 60 dias. Assim, o mesmo sistema que não estava aberto no dia 17 de maio foi aberto no dia 20 de maio (dia do vencimento do tributo) para pagamento.
Por seu turno, a temática das “Bets”. Em 2018, entendendo que contra fatos não há argumentos, deixou-se de considerar ilegal o jogo online no Brasil diante de normativa oriunda do Poder Legislativo. Anos sem regulamentação, e, consequentemente sem arrecadação decorrente da atividade passaram e, em 2023, a regulamentação foi aprovada pelo Congresso Nacional. Os vetos do Presidente de República vieram e foram para análise do Poder Legislativo. Nesse ínterim, o Ministério da Fazenda iniciou a produção de Portarias Regulamentadoras. Em um cenário de desconfiança, diante do claro novo embate entre Legislativo e Executivo, especulava-se que o Poder Executivo havia vetado dispositivos e pretendia dispor sobre a temática vetada através de Portaria. Foi exatamente o que ele fez. Em 04 de maio, foi publicada a Portaria responsável por questões relativas as receitas para fins de imposto de renda. Entretanto, em 09 de maio, o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional e os dispositivos que tratavam da temática da renda voltaram a vida. Parabéns ao Poder Judiciário, que, nessa vez, passou ileso.
Os cenários apresentados podem representar qualquer coisa, mas certamente não representam um ambiente de justiça tributária.
A tarefa de ser contribuinte no Brasil é árdua. A triste conclusão é que o mercado de especulação, por maior contrassenso que possa parecer, é menos arriscado do que investir no desenvolvimento econômico e social do país através de novos negócios.
Existe esperança? Quem sabe um dia haja um consenso que poder legislativo, executivo e judiciário fazem parte de uma mesma orquestra que precisa atuar de forma conjunta, coesa e leal para agradar ao seu público e verdadeiro detentor do poder: o povo.
*Ana Helena Karnas Hoefel Pamplona
Sócia do Beck Advocados Associados e Professora Universitária. Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde também concluiu seu mestrado. Especialista em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Editorial da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2018/2021). Membro do IARGS, Instituto dos Advogados do Brasil e da FEDST, Fundação Escola Superior de Direito Tributário.
Membra Fundadora AMIG – Associação das Mulheres da Indústria Gaming e IBDJ – Instituto Brasileiro do Direito dos Jogos.